Novos caminhos para a política de ciência

O início de 2014 marca o início de uma anunciada transição nas políticas públicas de C&T em Portugal. Haverá um antes e um depois do concurso nacional de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento cujos resultados foram conhecidos no início do ano. Não só pelo resultado dramático em si mas pela razão que lhe vem associada que remete para objectivos conscientes de mudança. E é importante discutir essa mudança no âmbito de um Portugal do Conhecimento. Naturalmente, o impacto do número de bolsas atribuídas criou um estrépito tão grande que a discussão de fundo acaba por não estar a ter o “tempo de antena” e aprofundamento que merece. E é fundamental ter esta discussão em 2014 (curiosamente no início de um novo ciclo do programa de investigação europeu –o Horizonte 2020 que sucede ao 7ºPQ).

Primeiro plano: com os números de novas bolsas individuais de doutoramento agora divulgados (298 bolsas atribuídas em 2014), mesmo se se somar as novas bolsas que serão atribuídas em 2014 no contexto da iniciativa recente da FCT de Programas de Doutoramento, que uma perspectiva optimista deriva em 700-800 novas bolsas, atinge-se um total de novas bolsas financiadas pela FCT de cerca de 1.000 bolsas ou ligeiramente acima (na iniciativa de Programas de Doutoramento, uma estimativa optimista pode variar entre 400 novas bolsas em 2014, resultado do concurso de 2012, e 400 + 400 novas bolsas em 2014 se o concurso de 2014, ainda em curso, introduzir uma média de mais 400 bolsas/ano). Este número compara com níveis entre 1500-2000 bolsas atribuídas por ano que nos anos anteriores têm permitido ‘alimentar’ o sistema científico nacional com mais de 1.500 novos doutoramentos por ano (desde 2008, segundo dados da Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), um limiar que nos tem permitido caminhar na média europeia no que compete a recursos de C&T (novos e ‘stock’ de recursos). O financiamento anual de um número tão reduzido de novas bolsas de doutoramento levará a que dentro de 4-6 anos o fluxo de novos doutorados por ano desça a pique, ameaçando reduzir para menos de 1.000 a inserção de novos doutorados por ano no sistema C&T nacional (regresso a números anteriores a 2002). No caso das bolsas de pós-doutoramento, a problemática tem outros contornos, que só por si merece uma discussão ampla, não deixando as 233 bolsas agora atribuídas (sem que exista uma compensação consistente na contratualização de investigadores pós-doc através de outra medida contratual) de representar um nível demasiadamente liminar para um sistema científico com amarras e limitado noutras opções de abertura à entrada de novos recursos. Naturalmente, sabe-se que existem outras modalidades de atribuição de bolsas, nomeadamente pelas próprias instituições científicas através dos projectos financiados pela FCT, mas essa modalidade tem existido há muitos anos não sendo algo que possa ser agora contabilizado como factor adicional.

Segundo plano: a transição do modo de atribuição de bolsas, de um modelo de bolsas individualizadas atribuídas por concurso pela FCT para um modelo de concessão de bolsas associadas a programas de doutoramento, e geridas pelas universidades e laboratórios, merece reflexão. Existem razões históricas para a centralização na atribuição das bolsas, que permitiram uma forte transparência e equidade na atribuição de bolsas de formação avançada numa altura em que o sistema de C&T nacional ainda era muito débil, com poucas massas críticas e fortemente dependente de um grupo de elites circunscrito. Hoje, contudo, atingiram-se massas críticas importantes e são inúmeros os grupos de investigação de excelência que existem nas universidades e laboratórios de investigação, em todas as áreas científicas. É natural e provavelmente benéfico que aumente a autonomia e responsabilidade das próprias instituições na escolha e atribuição das bolsas de formação avançada, visando a sua estratégia e plano de atividades. É um modelo complementar inevitável, mas que deve ser introduzido com tempo e numa política articulada com as restantes iniciativas de apoio à C&T pela FCT.

Terceiro plano: a transição de um modelo de financiamento à Ciência baseado maioritariamente no orçamento do estado (independentemente de se considerar ou não fundos estruturais) para modelos de maior distribuição de fontes de financiamento merece também reflexão. O papel dos orçamentos públicos dirigidos à Ciência é histórico, bem como a noção de que este deve ser prioritariamente dirigido à investigação científica fundamental, de base, que vai construindo os alicerces para a exploração de novo conhecimento, novas tecnologias e no final e eventualmente novas aplicações. Pensar que o novo programa de investigação europeu, o H2020, pode ser um excelente complemento orçamental a este esforço contínuo de financiamento da ciência de base é no mínimo contraditório com os próprios desígnios do programa, que vem apontar cada vez mais para a investigação aplicada, em ecossistemas de demonstração tecnológica, com forte domínio das empresas e com objectivos de resultados já muito próximos do ‘mercado’. Sobre outras fontes de financiamento, e embora estejam presentes exemplos recentes de investimento privado no desenvolvimento da Ciência (sendo o caso da Fundação Champalimaud o mais relevante) não deixam de ser exceções no conjunto global (e é assim globalmente, mesmo nos EUA). Não é de esperar que num contexto onde existe (e deve existir) risco máximo quer nos outputs quer na sua aplicabilidade directa assomem abundantemente financiamentos privados beneméritos e ‘desinteressados’. Portanto, como é que a Ciência poderá estar cada vez menos dependente do OE ? Não deverá pelo contrário estar cada vez mais dependente do OE no que confere à investigação científica ‘mais distante do mercado’ e simultaneamente promover e/ou coordenar outras fontes de financiamento (europeu e privado) para a investigação tecnológica que conduz aos processos de inovação na economia ?

Quarto plano: e também, independentemente da maior ou menor virtude da transição, o factor tempo é determinante. Como em quase tudo, mas com especial relevo na Ciência, os referenciais temporais são longos (é a escala natural das abordagens ao desconhecido). Disrupções ou alterações sem aviso ou indevidamente planeadas têm externalidades negativas, podendo atingir uma escala dramática. A redução ‘brutal’ do número de bolsas atribuídas, em tão pouco tempo, tem todas as condições para desregular o funcionamento do sistema, que tem hoje uma dimensão e dinâmica de compromissos relevante e que não inverte facilmente planos de investigação, ou adia novas temáticas em curso sem consequências perniciosas e de bloqueamento. A preparação de estruturas e capacitação demora tempo, mas a sua reversão pode ser muito rápida.

Quinto plano: a burocracia aumentou nos últimos anos na gestão das universidades e por consequência nos centros de investigação e laboratórios. É um facto confirmado por toda a comunidade científica. São os processos aquisitivos, são as regras e regulamentos dos programas de apoio à C&T, são as limitações à incorporação de novos recursos. Ora aqui ficam três eixos a explorar: para quando um novo ‘simplex’ da ciência e da FCT (que não implica necessidades orçamentais de vulto) ? e para quando a introdução de programas de prémio (privilegiando naturalmente a excelência) com a minimização de marcos administrativos durante o prazo de execução ? e para quando o investimento consistente em torno de redes temáticas ou projetos mobilizadores no contexto nacional (em contextos de aplicação mas prevendo todo o ciclo de investigação) ?

Miguel Leocádio